sexta-feira, 1 de abril de 2016

* E caí no ópio como numa vala

Titulo: Opium Dreams. Part three
Fotógrafo: Olena Chernenko
Colecção: Vetta
A palavra tem a capacidade extraordinária de condução, indução e de expressão. Esboça contornos, enche os egos da alma e projecta expectativas viciantes na mente humana, como se de uma droga pesada se tratasse. Contudo, Maria “Papoula” tem um grande senão, o da não resolução da matéria em questão. Ainda que o seu efeito terapêutico seja de grande motivação e o seu efeito alucinogénio não tenha asas de limitação, no que respeita à matéria da matéria inteira, verifica-se que a falta de matéria deixa a matéria da matéria muito a desejar, e, toda a matéria que se quer corpo tangível por inteiro tem muita sede de gritar.
Pois será por conta do ópio, que a palavra se vê isolada para além da hora desejada, e, quando para além dela não existe mais nada, a alma esvazia e o corpo ressaca.

*Opiário
Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

segunda-feira, 28 de março de 2016

Para Castiel, com Amizade e Carinho

Imagem fornecida por Castiel

pétalas ao vento
sereia do rio
asas de anjo caído
casta fragilidade
embalada
pela triste lágrima
do doce violino

Trecho musical escolhido por Castiel

terça-feira, 22 de março de 2016

Escultura de Gente

Mercuro B. Cotto

Tenho o corpo
dormente.
Fez tanto frio
no tempo
que ele
já não me sente
a cabeça pesada,
a alma rasgada,
e o peito apertado
com vazios de nada.

Mas a minha mente,
mesmo (in)consciente,
denuncia
uma (es)cultura de gente
que se sente só
e carente.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Dos mantos a retalho à pele que há em mim

Mercuro B. Cotto























Dizem que as palavras falam.
Há quem diga que umas contam estórias,
outras rejubilam actos heróicos nos gritos da vitória,
e outras há, que calam histórias
no silêncio da memória.
Agora, tem dias que as minhas falas
são que nem um punhado de areia seca
sem fio de amarração.
Escorregam-se-me
por entre os dedos da mão
e caem por terra sem pé no chão.
Ainda assim, nos dias assim-assim,
lá me saltam algumas palavras da gaveta,
alinhavadas uma-a-uma,
nas entrelinhas da seda da minha teia.
E, os mantos a retalho lá se tecem,
ora doces, ora amargos
consoante os âmagos
que me despem.
Mas todos os modelos me vestem.
(mesmo os que se mostram
mais desajustados e fora de prazo).
Uns aconchegam-me
a palavra ao corpo da alma,
outros, no lugar do olhar, desenham-me
círculos com buracos vazios.
E mais há, aqueles modelitos mais coloridos,
que sobreaquecem o vício do desejo
por debaixo da pele;
que ora me desperta o travesseiro
do desassossego,
ora me confunde a rosa dos ventos.
Por fim, para além da pele que há em mim
ainda me sobrevive o rasto
de um rosto marcado pela desilusão,
qual armadura mascarada na palavra não (con)sentida.
A tal indumentária que me capa
o silêncio do grito agudo,
rasgado na ferida.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Da flor da paixão























Imagem tirada daqui

Sempre que a lua 
prenhe de ti
se vinha banhar à praia-mar,
conferia aquela nudez errante 
a imagem cénica 
de uma silhueta perfeita, 
esculpida nas ondas da areia.
Há quem diga que tal criatura 
se afigura figura fictícia
com olhar de mulher madura 
em semblante de menina.
Ficção ou talvez não,
quem a conhecia afirma, 
que a paixão 
todos os dias de lá vinha 
adormecer o dia no parapeito da noite
para namorar as estrelas.
Em boa verdade, 
quem bem a sentia
sabia que naquela vida 
não havia nenhuma outra janela 
que lhe concedesse 
tamanha alegria.
Agora, por acaso, alguém sabe 
quem se atreveu ao rubor 
que o seu corpo teceu?
Dizem que o segredo daquela flor
nenhum olhar alguma vez bebeu!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Palavra Autista

Jerry Uelsmann
























Ora aqui estou eu de fronte para uma folha de papel virtual imaculada a lançar-lhe aquele olhar de matadora, mas a miúda, mais teimosa que um jumento, ignora-me qualquer resposta. Só pode ser publicidade enganosa, esta história dos olhos serem o espelho da alma. Nesta mesma medida começo a duvidar da famosa teoria da brancura do algodão, que não engana. Caramba, como esta luta em busca da conectividade é inglória. Estaremos perante uma realidade turva que se mostra desajustada à visão semicerrada, que me dá sempre jeito para filtrar impurezas?! Ou estaremos perante uma realidade de paridade impraticável quando é claramente visível e evidente o princípio de equidade?! Podemos também estar numa realidade alienígena, que nos olha como se fossemos uns seres estranhos e aberrantes acabados de ser paridos da tendinha dos horrores! Ou então, estamos definitivamente numa realidade mundial onde impera a cegueira autista.
Ora de volta ao início, aqui permaneço eu, queda e serena (quase a bater no teclado) a tentar comunicar com a miúda interactiva, mas ela continua na sua com a sua brancura luminosa e teimosa sem me conceder a mínima expectativa. Agora o que me dá ganas não é a miúda, mas sim o que ela representa. A realidade do mundo acontece deste lado, do lado de fora da porta, onde estou eu, onde estás tu, onde estamos todos nós, que preferimos o conforto da palavra autista.
Agora para terminar, deixo-vos com mais umas palavrinhas gastas.

No silêncio de um olhar
dizem-se coisas maravilhosas
que as palavras
não têm capacidade de comportar.
As minhas estão gastas
e tu mundo,
lamentavelmente,
estás muito longe de mim...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Dos Instintos

Angela Buron
Raios-te-partam homem,
que te divertes a jogar os sentimentos
num tabuleiro de xadrez
como se de peças inanimadas
se tratassem.
O xeque-mate acontece,
não se compadece,
desconhecida é a sorte 
que se te tece.
De que te adianta ser,
um ser manipulador!
Já tu, felino, és bicho caçador.
Por norma traças o teu destino
pelo fio do instinto.
Ainda assim, emprestas-te 
independente,
somente a quem queres,
e a quem te sente verdadeiramente.
O respeito e a desconfiança,
são as regras de base,
que estabelecem as tuas zonas de conforto
e que definem as tua margens
de segurança.
O felino, esse bicho sozinho, 
só vira “bicho” e deita as garras de fora
quando ameaçado pelo perigo.
Já tu, homem,
ser vil e mesquinho,
por tudo e por coisa nenhuma
viras “bicho”.
E, pior que o bicho instintivo
só mesmo o bicho premeditado!