quinta-feira, 2 de junho de 2022

Maria Boneca – Capítulo I

Sentada na cadeira de baloiço, herança de sua avó paterna, simplesmente se quer só.
Embalada no tempo talhado daquela madeira maciça, a mesma dureza que lhe deu corpo à alma e lhe cristalizou o medo, esconde-se do mundo e deixa-se em espera. 
De olhos postos na janela e na porta do seu recanto, não ouve, não fala, não quer saber de nada, nem de ninguém, limitando-se ao gesto do balanço lento, em defensivas programadas. Sabe e sente que está para breve o presente do tão esperado momento. A brisa passou-lhe pela janela e materializou o Senhor que permanece do lado de fora à espera da sua mão aberta.
Sabe que após a batida da porta, lhe esperam uns vincos acentuados e uns quantos fios brancos a acrescentar ao seu olhar, e, sabe também que nunca há-de perder o sereno, mesmo que ao abrir da porta, se veja Maria Boneca morta.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

CHCF 11/08/2020

Excepcionalmente, hoje deixaram-me vê-lo.
Acedi ao jardim do Centro de Dia do Alzheimer do Centro Hospitalar Conde Ferreira para o ver do exterior, através de uma janela de guilhotina antiga, reabilitada.
Estava sentado numa cadeira de rodas, próximo da janela, de corpo curvado sobre sim mesmo e sondado (para ser alimentado), e precisou de colaboração da enfermeira Cândida para que a interação entre pai e filha fosse bem sucedida.
Estava sonolento e prostrado, mas ainda assim, com um esforço sobre-humano cantou os parabéns pelo seus setenta e nove anos e atirou-me um beijinho num sorriso palido e esmorecido.

Este dia já ninguém nos tira, Zé, nem o maldito Covid 19!
Para o ano, se vida houver, cá estaremos novamente para comemorar o teu 80 aniversário, caso contrário, o teu legado está devidamente delegado❤️, até porque enquanto memória minha houver, ninguém te vai esquecer.

Parabéns Zé 😊🎂🍾

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Dá a surpresa de ser

Mercuro B. Cotto

























Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

É a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

Fernando Pessoa
[Lisboa, 1888-1935]


sábado, 19 de outubro de 2019

Estados da Reabilitação Subversiva

Artur Pastor - Praça do Cubo

Caro Impontual, apreciei bastante este seu testemunho, tanto, ao ponto de me fazer exercitar os dedos. Portanto, alavanquei-me nas suas palavras e desenhei a ultima tendência das operações de cosmética conservação, realizadas nos edifícios de génese construtiva tradicional e secular, à boa moda da nossa mentalidade burguesa. E como está na moda o chavão da reabilitação…

A reabilitação conforme se extrai da essência da sua definição, consiste na restituição de algo ao seu antigo estado, habilitando-o de novo. Ou seja, a reabilitação de um edifício deve ocorrer pela sua conservação / preservação integral, interior e exterior, considerando o seu valor patrimonial e histórico, independente das suas características arquitectónicas, mais ou menos ricas, mais ou menos eruditas. 
Excluindo esses edifícios exemplares, à partida identificados e protegidos pelas entidades de tutela competente, a reabilitação tem ocorrido pela conservação parcial dos demais edifícios antigos, por via da preservação exclusiva do seu invólucro com relação directa com o espaço publico que se lhe apõe.

Pois é! Hoje em dia, os edifícios “bonitos” oferecem sempre um corpo muito apelativo aos olhos de quem nada entende das disciplinas da arquitectura, da histórica e da cultura. Pobres ou esfomeados, os ditos são corrompidos com programas funcionais megalómanos, desproporcionais ao tamanho do seu modelito estrutural, rebentando com as costuras da urbanidade e da habitabilidade da cidade. Aqui o “dolo” até corre bem para a boa imagem da paisagem e para a boa passagem do turismo.
E agora?! Onde está a alma genuína? Onde está o ser? Onde está o sentir? Onde está o seu conteúdo material e substantivo? Onde ficarão registadas as memórias da história? No fachadismo privado sobreposto ao interesse público?

Aqui o dolo é nocivo para o povo, o vulgo cidadão comum, que vai perdendo a passos largos a sua identidade cultural, a sua cidade, a sua habitabilidade e o seu contexto na sociedade da cosmética estereotipada que em busca de lucro faz do lar uma casa deserta.
Portanto, nesta conjuntura leviana, a beleza casa bem com a ganância, com a FALSA ignorância e com a inteligência subversiva.

Sabe Impontual, o Porto transformou-se numa metrópole muito bonita e atractiva ao olhar do turista, mas não é o meu Porto, o que guardo com saudade na memória dos meus tempos de menina. A Ribeira foi purgada da sua alma, remanescendo do seu legado os meninos que ainda desafiam o Rio Douro do tabuleiro inferior da Ponto D. Luiz I. Mas até hoje, esses ladinos, para além da carolice vão à disputa da moeda em troca do espectáculo do salto.
Hoje o Porto é um porto de passagem com muito movimento mas sem a sua gente dentro. Não há como deixar registo afectivo da sua história na memória da nossa malta nova.

E posto isto, caro Impontual, vertendo esta imagem para a beleza da mulher, é um facto que a sua beleza pode ser estonteante e ao mesmo tempo perigosa se for indevidamente ousada a seu favor e a seu bem prazer. Mas aí, cabe ao seu oponente ser dotado de pulso firme e forte para não se deixar ofuscar e imbuir pelo momento a ponto de perder o norte e o bom senso.

A beleza só é realmente bonita quando cria *“(…), seres alma e sangue e vida em mim”.
 
*Florbela Espanca, Ser Poeta em ‘Charneca em Flor’

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

fios de gente "ausente"

imagem extraída do National Geografic 

poesia
brisa breve de emoção
estados d'alma
desassossego do coração
ausência não faz estória
tão-pouco escreve memórias
nas ermidas da saudade
ausência
cala a voz do silêncio
rouba espaço ao tempo
ganha corpo
declara morte ao momento
ausência desenha ausência
vazios prenhos de solidão
desalento
(in)consciência
pobre folha de papel deserta 
caída se vê na teia do esquecimento