domingo, 21 de junho de 2015

Dos limites periféricos


Mercuro B. Cotto


















Abraça a vida conforme lhe é servida no prato do dia, aconchegando as asas no travesseiro do sonho onde só existe ela e um plano paralelo que deita vãos de portas e de janelas para horizontes de perder de vista, universo onde todas as realidades inventadas são possíveis.
Do outro lado da espera, entre um silêncio e outro, o tempo ganha corpo de resposta, e, por arrasto, o mundo lá fora vai ganhando forma proporcional ao seu tamanho e resiliência. Pequenino do tamanho de uma ervilha, tem os seus limites periféricos substancialmente encolhidos. Ela não sai e ninguém lá entra. Os lugares cativos estão todos preenchidos, até mesmo os vazios.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Mortalha do Sonho

Sayaca Maruyama





















Acordei do outro lado da rua ainda com o pijama vestido. Estava de costas voltadas ao muro da vizinha de cigarro aceso na ponta dos dedos, quando do nada te vejo chegar ao volante de um descapotável azul-escuro. (Está visto que não percebo nada de carros!)
Estacionaste o carro mesmo ao meu lado, mas a minha silhueta, o alvo da tua cegueira, está do outro lado, atrás da cortina da minha janela de guilhotina, a estudar sentada à escrivaninha. (A minha falecida mãe estaria a fazer o jantar e o meu pai ainda não teria chegado do seu último café diário).
Permaneço obsoleta à margem do enredo, mas consigo ver claramente o meu ar de espanto a olhar para ti num sorriso franco rasgado de orelha a orelha, como se não houvesse amanhã. Saíste do carro devagar como se estivesses a filmar a última cena de um filme de cinema. Retenho na memória uma imagem turva em tons de sépia, desenhada a pau de canela numa folha de papel cenário e uma figura altiva de cabelos grisalhos, olhos negros num rosto vincado de tez morena e alma cigana. Eu, ainda debutante saí de casa saltitante ao teu encontro com aquele brilho inato de menina ingénua e inocente. Meus Deus, como nessa altura ainda era uma alma crente…
Sinto-me impotente, observo-nos do outro lado da rua sem nada poder fazer, tu não me ouves, tu não me vês e ainda não me conheces.
Pegaste-me na mão direita, levaste-a contra o teu peito, deste-me um sorriso e segredaste-me ao ouvido do lado do coração, para que as paredes do mundo não te pudessem ouvir, que eu era tal e qual como me tinhas imaginado, um Sonho, e um Sonho assim deve permanecer, intacto, imaculado no tempo e no espaço para nunca morrer.
Deste lado da madrugada, a janela embaciou a rua, o céu perdeu a lua, e o filtro da vida continua a queimar a mortalha do sonho.













Os Sonhos são Asas de Borboletas, belas, frágeis e singelas como a porcelana chinesa, casquinha de ovo, pintada à mão com cores proibidas.

domingo, 7 de junho de 2015

A Voz













Título: The Phone Call
Fotógrtafo: Kasia Derwinska
Colecção: Flickr

Estava completamente embrenhada nos seus papéis, quando como de costume, o telefone toca. O serviço de redis mostra no visor um número identificado que lhe passou totalmente despercebido.
- Estou sim, muito bom dia.
Do outro lado, a Voz… A voz que há algum tempo não ouvia. A Voz, aquela e só aquela Voz de Trovão que lhe faz estremecer o corpo inteiro e lhe faz arrancar o pé do chão. A Voz, aquela que a faz falar pelos cotovelos sobre banalidades e que a obriga a esconder um sorriso nervoso, que sabe que ela não vê, mas que ainda assim, não arrisca deixar ser lido por uma linha mais escorregadia.
Trocaram meia dúzia de palavras, e como sempre, ela, uma gralha, nem a deixou falar.
Após mais uma eterna despedida, suspira. Pela primeira vez grava aquele número no seu telefone. Sabe que é inútil, que não o vai utilizar, mas é a única coisa que tem dele para guardar dentro de si...


JM, será que ela vai ligar?