Dás cabo de mim com essa tua constante desconfiança. E não me adianta contra argumentar, ser-te-ei para sempre uma leviana. A minha imagem há muito que está deformada dentro de ti; sei-me te filha de um deus menor, defeituosa, doente, contaminada, infectada pela promiscuidade das tainadas comunitárias, que passam de mão em mão, de boca em boca, de cama em cama. Pensas mesmo que faço do meu corpo o roteiro do pecado e do devaneio alheio, ou que sou um campo de batalha onde se travam as guerras da luxúria mundana? Achas mesmo que sou um batel pejado de marujos imundos, ou uma cadela com cio atrás de dono rafeiro? Enfim, mesmo sem resposta pronta, olhas-me como se fosse a estirpe mais baixa da mulher da vida,
de ganho fácil! Mas putas, somos todos desde o dia em que fomos paridos para a vida. Por vezes justa, por vezes injusta, branda ou dura, ela, a vida,
Enjoada da menina bem comportada, aquela da pose de porte de arma, cheia de peito
e de alma esganada; largou a besta em cima da mesa, bebeu-lhe a frieza numa só penada e sem pestanejar atirou o copo borda fora contra o vazio da hora morta. Estilhaçado, pobre coração aos pedaços caiu ao chão, atestando grão a grão a palma, e a greta da libertação. Finalmente, o tempo já sem corda tinha batido à porta para por cobro à demora de uma espera, que há muito se ria torta.
Excitação é a palavra exacta que descreve o estado de alma, no qual Maria se encontra em preparo para o grande dia da sua vida. Toda ela brilha de alegria, enquanto a costureira dá os últimos retoques no vestido pérola que a calça que nem uma luva.
A euforia é de tal forma desmedida que não se dá conta da tensão que se sente no ar, nem do ar pesado trajado no olhar da sua mãe. Tamanha é a distração que tão pouco toma ouvido nas badaladas do sino da igreja fora de hora e a manhã inteira.
Está quase a bater à porta a hora de conhecer ao vivo o seu futuro marido, o homem a quem está prometida desde o instante em que foi concebida. Dele só tem a imagem que construiu ao longo dos anos por conta das longas trocas de correspondência desenhadas à mão da fina pena em papel de seda, encorpada por uma fotografiaamarelecida e queimada pelo sol, que à surdina lhe foi fornecida pela Dona Maria, a governanta da casa e da cozinha. Ela que o conhece bem diz ser um homem de trato complicado, carregado de rigor e austeridade, bem-apessoado e bem abastado também.
O grande momento entra em contagem decrescente, e, antes de sair em procissão nupcial em direcção à igreja, por uma última vez, mira ao espelho a sua condição de menina solteira. Fecha os olhos e em silêncio celebra uma pequena oração aos presentes, alheia.
Pronta, deita pé ao caminho. Nas mãos leva um ramo de lírios brancos e sobre os cachos rolos de cabelo solto, leva o véu e uma coroa de rosas de santa teresinha. Em passo lento, ao ritmo da melodia escolhida, segue a direito sobre o tapete vermelho até ao altar do contentamento.
Incrédula dá um grito exasperado quando os seus olhos se fixam no noivo que se encontra jazido ali mesmo à sua frente, portando um rolo manuscrito na mão esquerda, segundo o pai, o voto final para ela ler e assinar.
“Minha doce Maria, infelizmente, e por motivos alheios à minha vontade, neste fatídico dia, estou exclusivamente de corpo presente. Danos colaterais, minha querida, do pacto que o teu pai fez com o Diabo, ainda tu não eras nascida.
Não resistas, não tens como fugir ao compromisso firmado, quando foi de tua livre vontade a entrega da tua mão ao fado do meu laço.
E para que conste no documento lavrado, doravante tens a teu cargo a anilha que faz de ti minha rainha”.
A cerimónia foi celebrada e o pacto a sangue selado, e desde esse dia nunca mais ninguém viu a Maria. Segundo reza a lenda, a campa do morto é velado todas as noites por um corvo que carrega na pata esquerda a anilha que fez da Maria, Rainha da Morte.
E a cria foi ali mesmo parida, no chão da cozinha, entre os parasitas e as migalhas ressequidas da comida. Vinha fria, enegrecida, deformada e amputada por conta das farpas da insegurança com que Maria havia sido atingida na arena da desconfiança.
Olhou para o nado desvitalizado, que tinha arrancado à catana de dentro de si, embrulhou-o no manto da sua dor manchado de culpa, aconchegou-o no seu colo esventrado e chorou-o.
E chorou-o e chorou-o, e despediu-se dele e dele, e lamentou a cobardia que tinha parido aquela cria, enquanto se arrastava e ia arrastando aquele peso morto pelo pescoço, por entre flores e ervas daninhas, abrindo portas ao destino.
Entre o fim e o nada, ergueu o filho, beijou-lhe o rosto, atirou com ele para o fundo do poço e pediu um desejo.